1.7.04

Cinco Segundos - Capítulo V: Grão a Grão

"O choque do Futuro", chamava-se o filme. Rickert lembrava-se perfeitamente de o ter visto numa sala qualquer de holocinema. Era muito antigo, nem sequer era holográfico. Reproduzia tudo num único plano, o que dificultava a visão a partir de certos pontos das salas circulares de holocinema. Causara-lhe uma profunda impressão, apesar de tudo o que o filme mostrava e previa não se ter concretizado minimamente. Abalara-o a um nível mais profundo, quando compreendera quão ínfimos eram os pontos que representavam a vida de um ser humano na escala infinita do tempo. Momentos perdidos para sempre, na memória destruída de um cadáver, na cinza dos corpos cremados... Momentos com significado para quem os vivera, momentos com significado para todos os homens que a eles tinham assistido... Momentos íntimos, doces, segundos de amor e ternura perdidos definitivamente entre coisas que pouca importância tinham. A visão de uma flor, um instante de felicidade: não eram eles mais importantes que a maior das guerras? Momentos perdidos para sempre no tempo, insignificantes, banais, preciosos...

O vento frio era cortante. Rickert tentou cobrir o rosto com a gola do blusão mas não resultou, o vento passava afiado por todas as frestas e magoava-lhe a cara. Maldito Parsons, pensou, agora nem em casa do Massa Lenta se podiam arriscar a ficar. Ao seu lado o companheiro cabeceou com o sono mais uma vez.
- Quanto tempo ainda, Massa Lenta?
- Hum? Alguns minutos mais, é mais seguro.
Ariel Montezuma não matara ninguém. A vítima fora ele, atravessado pelas balas das armas de Rickert e do Massa Lenta. Haviam-no deixado numa poça de sangue, no centro da sala de estar do apartamento. Uma busca metódica tinha-lhes fornecido algumas débeis pistas que poderiam revelar-se úteis mas que também podiam ser autênticos becos sem saída. Não lhes restava mais nada, porém.
- Vamos, – disse o Massa Lenta – o magnetrain deve estar a chegar.
A estação suburbana de Tinsea estava apinhada como sempre quando o magnetrain se aproximou levitando silencioso alguns milímetros acima do carril supercondutor. Um mar de gente saiu do comboio e um mar de gente tentou tomar o seu lugar. Rickert e o Massa Lenta debatiam-se para obterem um pouco mais de espaço vital na carruagem superlotada.
Nos papéis encontrados no apartamento de Ariel Montezuma havia um bilhete amarrotado com algumas palavras escritas. Dizia apenas: mercadoria entregue amanhã, deitar no lixo assim que possível. Colbert. Rickert estava muito desconfiado de que a mercadoria referida era ele próprio, mas só interrogando aquele tipo o poderiam confirmar. Parsons dera-lhes uma última informação antes de ser sumariamente executado pelo Massa Lenta. Aquele homicídio não pesaria a Rickert no seu currículo.
O nome completo do homem era Colbert MacMahoney e vivia em Little Dresden, uma centena de quilómetros a norte de Bluebank. Aquele comboio passava por lá.

Fora raptado por Lucius Esteban e quatro dias depois fora entregue por Colbert MacMahoney a Ariel Montezuma para ser despejado num beco qualquer. O que se passara nesses quatro dias ainda não o sabia, mas o hiato da memória estava cercado e não podia escapar. Lá fora a paisagem corria veloz, florestas de cimento sujo e depósitos de reciclagem, receptores de energia, mais cimento sujo e todas as coisas já vistas, repetidas uma e outra vez, até a náusea aparecer e os olhos se desviarem para os rostos dos companheiros de viagem.
Havia de tudo ali: prostitutas e pequenos executivos, trabalhadores sem qualificação, desempregados crónicos e ociosos sem razão, ladrões e carteiristas e, possivelmente, grabbers. O perigo residia apenas nesse facto, porque dali não existia possibilidade de fuga.

- Será coincidência ou terá sido avisado?
- Possivelmente soube da morte do Ariel.
- Pois é, Rickert. Já vasculhámos tudo e nada: está tudo muito limpinho e asséptico. Nesta casa tanto podia morar o maior criminoso de toda a região como a mais casta das donzelas.
- Ainda existem essas aberrações? – disse Rickert em tom irónico. O sorriso que ostentava desapareceu quando a sala onde se encontravam pareceu dobrar-se sobre si mesma, uma e outra vez. Rickert sentiu-se dobrado com ela, corpo e alma, até as ideias se tocarem e se estilhaçarem em pedaços pequenos sem significado e o corpo se transformar numa massa amorfa mais própria de um verme.

1 Comments:

Blogger theSIGNer disse...

Não gosto de ler mas adoro escrever...
A ficção científica não me agrada muito, mas gostei do pouco que li.

Bom Trabalho!
Bom Verão, e férias, para quem as tenha...

9:36 da manhã  

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